A calúnia das alegadas “perdas de água” no abastecimento público

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Autora: Luísa Tovar

Tem vindo a ser apregoadas percentagens muito altas de “perdas de água” em sistemas de abastecimento público. É uma acusação muito grave, mais ainda quando se fazem sentir intensamente os efeitos da seca. E muita gente acredita.
É propaganda ideológica falsa, que importa desmontar e esclarecer.

1. O que eles chamam “perdas de água”
Usam muito abusivamente a designação de “perdas de água” como sinónimo de “água não facturada”. Chamam “perdas de água” à diferença entre o volume de água captada, (ou o volume de água comprado ao sistema multimunicipal) e o volume de água vendido ao utilizador final. É um balanço de caixa, um balanço comercial, que nada tem a ver com o balanço hidráulico nem com o benefício social.

Acontece que as Autarquias usam água. E muita.
Mais rigorosamente – os munícipes e visitantes usam muita água que não lhes é cobrada.

  • Para fornecimento à Câmara e aos serviços autárquicos,
  • Para chafarizes e fontanários públicos,
  • Para balneários públicos, escolas, creches, pavilhões desportivos, bibliotecas da autarquia,
  • Para lavagem de ruas, limpeza de edifícios públicos
  • Para manutenção de jardins e espaços públicos
  • Para instalações sanitárias públicas
  • Para apoios a eventos e feiras municipais
  • Para as bocas de incêndio
  • Para uma enorme quantidade de serviços gratuitos que são disponibilizados aos munícipes e, naturalmente, precisam de água e saneamento.

As Câmaras não cobram a água a si próprias – umas medem, outras não, o que não afecta os serviços prestados – mas, naturalmente, não cobram a si próprias, não tem qualquer sentido emitir facturas, porque essa água não é cobrada. Note-se que a instalação e manutenção dos contadores, bem como as rotinas de leitura, registo e processamento dos dados implicam despesas e encargos administrativos ao erário municipal “alternativos” a outras prestações aos munícipes. As Câmaras e SMAS são entidades de direito público, têm por objectivo o serviço e a contabilidade é completamente diferente das entidades de direito privado.

Os concessionários dos serviços privatizados não fornecem nada gratuitamente – cobram cada gota – então, as Autarquias pagam o uso próprio e todos os serviços gratuitos ou esses são eliminados logo que o concessionário instala o negócio, como já aconteceu, por exemplo, com os fontanários em Tondela. Este tem sido mais um dos aspectos das privatizações ruinosos para as Autarquias.

Só com as cobranças às Autarquias, as privatizações por concessão originam muito mais facturação, naturalmente. Facturação ao serviço público e ao serviço gratuito!

Assim, todas as privatizações formais – passagem do direito público ao direito privado – se traduzem em muito mais facturação.

É o “usado e não facturado” que constitui a mais grossa fatia daquilo que nos apregoam como “perdas de água”.

2. As “perdas reais”
Apresenta-se abaixo a terminologia usada pela IWA (Associação Internacional da Água), muito generalizadamente citada em documentos técnicos sobre “perdas de água”

 

 

 

 

 

 

 

 

Sublinha-se que só as PERDAS REAIS têm significado físico, de “água que não cumpriu o seu destino” e voltou à Natureza sem abastecer ninguém.
As PERDAS REAIS são calculadas subtraindo ao VOLUME ENTRADO NO SISTEMA o CONSUMO AUTORIZADO e as PERDAS APARENTES.
Mas só as parcelas medidas dos consumos autorizados são conhecidas e as PERDAS APARENTES são problemas jurídico-administrativos, que só existem enquanto “desconhecidos”, porque, logo que detectados, são eliminados.

Os consumos autorizados não medidos são lícitos e fazem parte do objectivo social do sistema.
Incluem frequentemente todas as prestações gratuitas já referidas atrás.
Somam-se ainda casos de utentes com abastecimento de água gratuito e sem contador, por opção da Autarquia e por razões muito diversas, entre as quais sobressai a garantia do direito universal à água em zonas com inviabilidade técnico-económica de instalar contadores e/ou de assegurar as leituras – por exemplo, nalgumas Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI) e noutros casos em que as características de dispersão populacional, de rede ou de origem de água não permitem o fornecimento com a pressão regulamentar ou o cumprimento ininterrupto de todos os parâmetros legais – então, algumas Câmaras optam por fornecer gratuitamente o “possível”.
Assim, uma percentagem muito elevada da utilização social e fundamental da água está frequentemente “oculta” nos CONSUMOS LÍCITOS não facturados …

Só seria possível fazer uma avaliação das PERDAS REAIS se não houvesse “consumos não medidos” o que exigiria um sistema muito completo e sofisticado de medições contínuas ao longo de toda a rede de distribuição e ramais, uma bateria enorme de contadores e a administração e leitura sistemática de tudo isso. Na verdade, em nenhum sistema português é feita essa monitorização completa e, por isso, as alegadas “perdas” não são conhecidas.

No XXI Congresso da Ordem dos Engenheiros, que decorreu em Coimbra em 23 e 24 de Novembro de 2017, o Eng. José Sardinha, Presidente da EPAL, fez uma comunicação intitulada “Wone: Um Sistema Inteligente na Gestão e Controlo de Perdas de águas nas Cidades” sobre o moderníssimo sistema de medição e controlo instalado na EPAL para identificação, monitorização e redução das “perdas de água”. Nessa comunicação, dirigida a profissionais de engenharia, não conseguiu fornecer quaisquer dados que descriminassem as várias componentes da terminologia oficial de cálculo das perdas reais. De facto, sempre referiu as “Perdas de água” como a diferença entre os volumes de água saídos das Estações de Tratamento e a “Água Facturada” – incluindo nas “perdas” todos os consumos autorizados e não facturados, mas excluindo as perdas entre a captação e a saída da ETA. Neste cômputo, e não identificado explicitamente, a “redução de perdas” abrangia os cortes de abastecimento de água a utilizadores domésticos. Referindo determinada Autarquia (não nomeada) exemplificou como “escândalo” de “perdas de água” o abastecimento gratuito não facturado a numerosos utentes domésticos (relembro, o direito universal à água).

Ficámos assim cientes que a própria EPAL, que tem o mais sofisticado e avançado sistema de monitorização, processamento e controlo do circuito hidráulico da água existente em Portugal, não sabe as PERDAS REAIS e aplica o termo “perdas de água” a toda a “água tratada e não facturada”. O que são coisas totalmente diferentes.

Se não são conhecidas as PERDAS REAIS nesse sistema, não são possíveis de conhecer em nenhum outro.

Só por má fé são alardeados valores de PERDAS DE ÁGUA atribuídas a tal ou tal autarquia. Só por má fé e propaganda ideológica apodam de PERDAS DE ÁGUA os serviços públicos gratuitos, dando-lhes a conotação de desperdício.

3. Inevitabilidade das perdas reais de água
É fisicamente impossível eliminar perdas reais significativas num sistema de abastecimento público.
Por imposição regulamentar e sanitária, a água de abastecimento tem de circular nas tubagens em alta pressão; isto obriga a que havendo microfissuras nos canos, ou em caso de roturas, a água tratada saia em pressão impedindo a contaminação por afluência de águas poluídas. No esgoto é o inverso, circula a baixa pressão para que em caso de contacto com o meio a água exterior entre no tubo e não haja derrames.
Por projecto, a rede de abastecimento de água “perde água” e a rede de esgotos “mete água”.
Quanto mais extensão de cano, mais perdas de carga há e maior é a pressão necessária no início para manter o essencial na zona final. Mais pressão, mais fugas…

Não são comparáveis as percentagens de perdas globais em sistemas diferentes – quando muito, é vagamente comparável a perda média por quilómetro de conduta. A dimensão da rede – quilómetros de tubos – é a principal fonte de perdas, e também o maior e mais dispendioso obstáculo à manutenção, ao rejuvenescimento e ao controlo.
O concelho de Lisboa, com uma enorme concentração de população, maioritariamente “empilhada” em prédios de vários andares, tem uma rede muito mais curta que Sintra ou Loures. 50% da área do País tem densidades populacionais inferiores a 35 habitantes por km2…
Mesmo que soubéssemos as PERDAS REAIS comparávamos o quê?

4. Dar às coisas as proporções devidas
O abastecimento de água doméstico – incluindo as perdas todas – representa uma pequeníssima percentagem do uso total da água.

O Plano Nacional da Água de 2001 estima as necessidades de água para abastecimento público em 6,5% das necessidades totais de água, atribuindo às necessidades de água para agricultura e pecuária 90% do total. Isto, sem contar a produção hidroeléctrica, que é, de longe, o maior utilizador e devolve ao rio a água toda, mas, em época de seca, pode depauperar muito as reservas em albufeiras.

Por outro lado, calculei a “minha” utilização individual da água segundo o método da pegada de água (waterfootprint.org) que inclui uma estimativa de perdas nos vários processos. A parte da minha “pegada” em uso doméstico é 5% do total.

 

 

 

 

 

Estes cálculos são inexactos, mas é bem real a diminuta proporção de disponibilidades necessária à satisfação universal do direito à água. É noutros sectores e hábitos de consumo que devíamos priorizar a optimização do uso da água.

Só o ódio aos serviços públicos acessíveis e gratuitos motiva a campanha sobre falsas “perdas de água”.

Estejamos alerta!

 


1 – http://waterfootprint.org/en/resources/interactive-tools/personal-water-footprint-calculator/personal-calculator-extended/

Original publicado no Jornal Avante, ed. 18 Janeiro de 2018, acessível em http://www.avante.pt/pt/2303/emfoco/148345/