Dia Mundial da Água 2024: que seca é esta, amigos?

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Luísa Tovar

Jornal Avante!

Os ser­viços pú­blicos de mo­ni­to­ri­zação e gestão da água foram re­du­zidos ao mí­nimo. Esta é uma «seca po­lí­tica»

Falta água no Alen­tejo e no Al­garve.

Estas re­giões têm menos pre­ci­pi­tação e é muito mais va­riável que nou­tras zonas do País; sendo mais quentes, são mais longos os pe­ríodos em que a eva­po­ração po­ten­cial su­pera a pre­ci­pi­tação e, por­tanto, o pouco que chove nesses pe­ríodos eva­pora-se logo sem repor as re­servas. Além disso, como em todo o In­te­rior de Por­tugal, o es­co­a­mento de­pende muito das afluên­cias de Es­panha que, de facto, pouco mais são que os cau­dais de cheias ex­cep­ci­o­nais que os es­pa­nhóis não con­se­guem se­gurar.

Por isso era ne­ces­sário o Al­queva. Após a sua en­trada em fun­ci­o­na­mento, o sul do País dispõe de ca­pa­ci­dade de ar­ma­ze­na­mento su­per­fi­cial e sub­ter­râneo muito ex­cep­ci­onal em Por­tugal, que de­veria per­mitir atra­vessar sem pro­blemas pe­ríodos re­la­ti­va­mente longos de seca me­te­o­ro­ló­gica.

Os re­ser­va­tó­rios são es­sen­ciais para re­dis­tri­buir a água dos pe­ríodos hú­midos pelos pe­ríodos secos, col­matar as «faltas de água» de­cor­rentes das va­ri­a­ções sa­zo­nais ou de secas me­te­o­ro­ló­gicas. Mas não a fa­bricam. As ex­trac­ções têm de ser sig­ni­fi­ca­ti­va­mente in­fe­ri­ores à re­carga na­tural anual me­diana (que é sig­ni­fi­ca­ti­va­mente in­fe­rior à média).

Mas as ex­trac­ções de água no Alen­tejo e no Al­garve têm vindo a crescer bru­tal­mente so­bre­tudo nos úl­timos 15 anos, sem olhar a esse li­mite.

Em 2022 a EDIA for­neceu 495 594 795 m3 de água para rega e mais 9 691 651 m3 a em­presas do Grupo Águas de Por­tugali.

A água for­ne­cida pelo Al­queva para rega au­mentou 33% entre 2021 e 2022, em­bora a área re­gada só tenha cres­cido 4% nesse ano. Con­si­de­rando só os re­gantes di­rectos, que usam 76 % da água total for­ne­cida, entre 2018 e 2022 au­men­taram o con­sumo em 82%. Desde 2016 ve­ri­fica-se a con­cen­tração fun­diária, tendo do­brado a área ins­crita e di­mi­nuído o nú­mero de be­ne­fi­ciá­rios. Em 2022, 75,5% da área be­ne­fi­ciada foram pro­pri­e­dades com mais de 50 hec­tares, pre­do­mi­nando as mo­no­cul­turas in­ten­sivas de olival e frutos secos re­gadosii.

Pro­li­feram as cul­turas in­ten­sivas mais exi­gentes em água. São clas­si­fi­cados como Pro­jectos de In­te­resse Na­ci­onal (PIN) ex­tensos campos de golfe. Pa­tro­cina-se à Iber­drola uma cen­tral pro­du­tora de amo­níaco e hi­dro­génio com água de Al­queva.

Os aquí­feros estão em ní­veis bai­xís­simos. As afluên­cias ao Al­queva di­mi­nuem, so­bre­tudo as pro­ve­ni­entes de Es­panha. A EDIA afirma que atingiu o li­mite de for­ne­ci­mento com os cli­entes ac­tuais.

O dé­ficit tornou-se es­tru­tural

Este é o re­sul­tado pre­visto da po­lí­tica ultra-li­beral de mer­can­ti­li­zação e venda da água para cuja im­ple­men­tação (e ex­pli­ci­tação) foram um marco re­le­vante as Leis 54/​2005 e 58/​2005, pro­postas e apro­vadas em unís­sono pelo PS e todos os par­tidos à sua di­reita – que pre­co­nizam a pri­va­ti­zação do do­mínio pú­blico hí­drico e a subs­ti­tuição da ad­mi­nis­tração pú­blica da água pela ins­ta­lação e nu­trição de mo­no­pó­lios, ex­plo­rados por muito grandes en­ti­dades de di­reito pri­vado e ten­den­ci­al­mente de ca­pital pri­vado.

A bar­ragem do Al­queva fe­chou as com­portas em 2002, mas o con­trato de con­cessão à EDIA aguardou a en­trada em vigor dessas leis.

A re­lação com Es­panha tem-se ca­rac­te­ri­zado não só em con­vé­nios pre­ju­di­ciais para Por­tugal, como pelo des­leixo na mo­ni­to­ri­zação dos cau­dais en­trados e não exi­gência de cum­pri­mento pela parte es­pa­nhola.

O que ainda não en­trou no mer­cado – como os aquí­feros sub­ter­râ­neos – é des­lei­xado de­li­be­ra­da­mente até à exaustão. A in­ter­venção do Es­tado não é nula, mas é ar­bi­trária e opaca, de­ci­dida aos mais altos ní­veis de poder sem a ins­trução téc­nica ne­ces­sária, pri­vi­le­gi­ando os ne­gó­cios pri­vados mais ren­tá­veis a curto prazo sobre as uti­li­za­ções mais ne­ces­sá­rias e o in­te­resse pú­blico; im­pondo preços e taxas que in­vi­a­bi­lizam usos so­ci­al­mente muito re­le­vantes.

Os ser­viços de ad­mi­nis­tração pú­blica, mo­ni­to­ri­zação e gestão da água de­sa­pa­re­ceram ou foram re­du­zidos ao mí­nimo. O INAG, ins­ti­tuição cen­te­nária de gestão e pla­ne­a­mento dos re­cursos hí­dricos, foi ex­tinto em 2013 e o edi­fício foi ven­dido.

O dé­ficit tornou-se es­tru­tural.

Esta é uma «seca po­lí­tica».

É pre­ciso hi­e­rar­qui­zação de uti­li­za­ções, li­cen­ci­a­mento, fis­ca­li­zação e mo­ni­to­ri­zação da água. Cul­turas ade­quadas ao clima e à ocor­rência na­tural da água. Água gra­tuita ou muito ba­rata, mas ra­ci­o­nada de acordo com a dis­po­ni­bi­li­dade, sa­tis­fa­zendo as ne­ces­si­dades e dis­tri­buída com equi­dade.

Não in­te­ressa di­a­bo­lizar ti­po­lo­gias de uso, mas exigir outra po­lí­tica.

Por exemplo, que o Es­tado cumpra as atri­bui­ções e de­veres que lhe aco­mete a Cons­ti­tuição.