Na qualidade de Relatores Especiais das Nações Unidas sobre o direito a uma habitação condigna ( Leilani Farha) e sobre os direitos humanos à água e ao saneamento (Léo Heller), os referidos representantes das Nações Unidas publicaram, no fim da sua visita oficial conjunta a Portugal (5-13 dezembro) – que tinha como objetivo, por um lado, identificar os principais obstáculos ao pleno cumprimento dos direitos à habitação, água e saneamento e, por outro lado, recomendar legislação, políticas e outras medidas para ultrapassar estes obstáculos e garantir que todas as pessoas na sociedade gozam destes direitos humanos – uma Declaração de Fim de Missão, que apresenta a avaliação preliminar resultante dos elementos recolhidos, da qual se realça os seguintes aspectos:
“Desde 2007, Portugal tem vindo a deparar-se com uma crise económica sem precedentes que tem tido um impacto importante no país e que afetou particularmente os direitos económicos, sociais e culturais, incluindo os direitos à habitação, água e saneamento dos seus habitantes. As medidas de austeridade impostas no âmbito do memorando de entendimento assinado pelo Governo de Portugal em maio de 2011 com o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia (a “Troika”) e que terminou em 2014, conduziram a um aumento das taxas de pobreza e da exclusão habitacional, a uma redução das prestações de proteção social e a uma inacessibilidade financeira aos serviços públicos.
Embora, atualmente, o país esteja num processo de retoma económica – tendo resistido à pior parte da tempestade – os residentes portugueses ainda enfrentam sérios desafios a longo prazo: elevado nível de desemprego, cortes salariais (sobretudo no setor público), aumento dos impostos e, de uma forma geral, um maior risco de pobreza para as famílias que costumavam estar acima do limiar de pobreza antes da crise.
Estamos preocupados com os efeitos deste processo na concretização dos direitos humanos relativos aos nossos mandatos, em especial, a exclusão e discriminação da comunidade cigana, composta sobretudo por cidadãos portugueses que vivem em algumas das condições de habitação mais deploráveis, por vezes, sem acesso à água e ao saneamento. Algumas pessoas de origem africana, em grande medida oriundas de antigas colónias portuguesas, como Cabo Verde, Moçambique e Angola, também se encontram entre os grupos mais pobres e necessitados em termos de acesso a uma habitação condigna. Estamos igualmente preocupados com as condições de vida dos sem-abrigo, incluindo a falta de acesso a instalações de água e saneamento nos espaços públicos, e a escassez de abrigos e pensões que respondam adequadamente às suas necessidades.
De modo a dar resposta a esta situação é vital, entre outras medidas, a implementação de um quadro legislativo e institucional bem como políticas que respeitem os princípios dos direitos humanos. Deve ser dada ênfase particular às necessidades das pessoas em situações vulneráveis, incluindo os “novos pobres” – aqueles que foram empurrados para a pobreza como resultado das medidas de austeridade – que poderão não ter direito a determinadas proteções da segurança social. Os setores da habitação, água e saneamento iriam beneficiar da adoção de uma clara abordagem baseada nos direitos humanos nas políticas relevantes, que contemplasse princípios como: não-discriminação e igualdade, participação e responsabilização.
Face a este cenário, é essencial sublinhar que Portugal ratificou vários importantes instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos que protegem o direito a um nível de vida adequado, incluindo habitação, água e saneamento, sem discriminação, designadamente o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e seu Protocolo Opcional, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. Portugal ratificou ainda a Carta Social Europeia e a Carta Social Europeia na sua versão revista. Dado o forte compromisso de Portugal para com os princípios internacionais em matéria de direitos humanos, o Governo tem a obrigação clara de garantir a aplicação destes direitos a todos os níveis.”
[in Declaração de Fim de Missão, nota introdutória, pag(s). 2-3]
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“Indubitavelmente Portugal alcançou um progresso notável no setor da água e saneamento nas décadas recentes, que é reconhecido internacionalmente. Portugal dispõe atualmente de uma cobertura de serviços de água quase universal e a cobertura de serviços de saneamento, embora com um nível inferior ao dos serviços de água, também evoluiu de forma assinalável. A qualidade da água para consumo humano e o tratamento das águas residuais melhoraram igualmente de forma impressionante. Estas conquistas devem ser reconhecidas e comemoradas e congratulo calorosamente os governos portugueses, atual e passados, bem como a sociedade portuguesa, por estes feitos. Contudo, a minha avaliação da situação atual sob o prisma dos direitos humanos indica que o trabalho ainda não está completo.”
[in Declaração de Fim de Missão, na nota de enquadramento a capítulo I.Situação dos direitos humanos à água e ao saneamento: “o (incompleto) milagre português”, pag.3]
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“A reforma do setor da água em Portugal resultou numa arquitetura institucional muito complexa, em que uma série de atores desempenham diferentes papéis. Nas muitas reuniões realizadas com entidades com vários graus de responsabilidade na concretização dos direitos humanos à água e ao saneamento, tive ocasião de me inteirar da complexidade da água que corre para dentro e das águas residuais que correm para fora dos agregados familiares portugueses. Embora esta arquitetura institucional tenha sido largamente responsável pelas grandes realizações do setor, conhecidas como o “milagre português”, verifiquei que existem atualmente diferentes níveis de tensão entre as diversas autoridades em causa. Esta situação põe em causa a estabilidade do enquadramento institucional e poderá minar a realização progressiva dos direitos humanos à água e saneamento no país. Permitam-me que explique a que é que me refiro como sendo as “tensões” no setor.
As tensões entre os fornecedores de serviços de abastecimento de água em alta e os responsáveis pelo fornecimento “em baixa” estão presentes desde a reforma e continuam a fazer-se sentir nalgumas partes do país. A resistência de alguns municípios em integrar o sistema em alta levou à coexistência de diferentes formas de modelos de gestão no país e poderá ter limitado o acesso destes municípios aos fundos nacionais ou comunitários. Existem igualmente tensões relativamente ao grau de centralização ou descentralização do fornecimento de água, bem como do papel da administração central do Estado e das autoridades locais. A independência do regulador nacional – ERSAR – é por vezes questionada pela administração central, que pretende desempenhar um papel mais substantivo nas decisões chave o que poderá afetar as politicas sociais, e pelos municípios que alegam que a sua autonomia está a ser minada. Outra queixa com a qual me deparei foi o desconforto de algumas autoridades locais pela dificuldade que sentem em fazer as suas vozes serem ouvidas nos processos de tomada de decisão relativamente ao fornecimento dos serviços de abastecimento de água e de saneamento em alta, na qualidade de acionistas das empresas.”
[in Declaração de Fim de Missão, no ponto 1 do capítulo I.Situação dos direitos humanos à água e ao saneamento: “o (incompleto) milagre português”, pag.4]
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“Os direitos humanos à água e ao saneamento não significam que todos devamos ter acesso gratuito aos serviços. No entanto, também não significa que quem não tem capacidade económica de pagar seja despojado desses serviços.”
[in Declaração de Fim de Missão, no ponto 2 do capítulo I.Situação dos direitos humanos à água e ao saneamento: “o (incompleto) milagre português”, pag.5]
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“Todos os assuntos relacionados com a não acessibilidade financeira aos serviços pelos grupos em situação financeira vulnerável têm levado a situações e níveis diversos de cortes no abastecimento devido ao não pagamento das contas por falta de capacidade económica. Os cortes de abastecimento provocados pela falta de capacidade económica devem ser prontamente tratados, uma vez que ao abrigo do direito internacional em matéria de direitos humanos constituem uma violação dos direitos humanos.”
[idem, pag.6]
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“Com as melhorias significativas no acesso à água e ao saneamento em Portugal, poder-nos-emos perguntar “será que Portugal necessita de uma nova lei sobre os direitos humanos à água e ao saneamento?” A resposta é “sim”. A Constituição Portuguesa não refere explicitamente os direitos humanos à água e ao saneamento, mas tal não significa que os cidadãos portugueses não tenham o direito de gozar destes direitos e certamente não significa que o Governo português não tem a obrigação de os concretizar progressivamente. Tanto os direitos dos indivíduos à água e ao saneamento quanto as obrigações do Estado derivam dos compromissos internacionais de Portugal conforme expressos no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e o seu Protocolo Opcional, bem como no apoio de Portugal às Resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas, que explicitamente reconheceram os direitos humanos à água e saneamento.
No entanto, é fundamental que a Assembleia da República aprove o diploma que outorga reconhecimento jurídico aos direitos humanos à água e ao saneamento a nível nacional.”
[in Declaração de Fim de Missão, no ponto 4 do capítulo I.Situação dos direitos humanos à água e ao saneamento: “o (incompleto) milagre português”, pag.6]
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Mais informa a Declaração de Fim de Missão, que o relatório do mandato sobre a habitação será apresentado na 34ª sessão em março e o relatório do mandato sobre a água e o saneamento será apresentado na 36ª sessão em setembro.
Leia a noticia sobre a reunião com a AIA do Relator Especial sobre os direitos humanos à água e ao saneamento, Professor Doutor Léo Heller.